4 de janeiro de 2023

O Iluminado

O Iluminado (The Shinning, EUA, 1980)

Diret Stanley Kubrick
Com Jack Nicholson, Shelley Duvall, Scatman Crothers, Danny Lloyd, Joe Turkel, Philip Stone, Barry Nelson.

The Shinning

É bom estar de volta. Clássico do gênero que parece não pertencer a gênero nenhum e cumpre sua posição de marco divisor no cinema fantástico de forma bastante particular. É possível que The Shinning não tenha feito muito pelo cinema de horror em termos comerciais, como fizeram Poltergeist ou Nightmare on Elm Street, mas ganhou seu status crítico e de público com o tempo. O divertido é que The Shinning mantém seu interesse pelos enigmas e decifrações a cada revisão.

Baseado em livro de Stephen King (e muito melhorado, na modesta opinião do Felipe Preto), o roteiro do próprio Kubrick com a ajuda da escritora Diane Johnson altera especialmente a conclusão e o que no romance era o corriqueiro retorno à ordem, no filme fica em aberto em possibilidades mais amplas de significado. A história é sobre o escritor Jack Torrance e sua esposa Wendy, que juntos a Danny, seu filho de sete anos, enfrentam uma temporada no Overlook hotel, situado nas montanhas do Colorado. Jack aceitou o trabalho de zelador na temporada de inverno – quando o hotel encerra atividades por questões de economia – para poder se dedicar a seu livro. Mas o hotel tem um histórico macabro de mortes e manifestações. Danny, e seu amigo-entidade Tony, percebem logo o perigo. Com o tempo, Jack começa a perder a sanidade pondo em risco a vida da esposa e filho. Exatamente como o zelador anterior havia feito! 

Porém, mais do que o simples alinhamento narrativo, como o livro, o filme prefere investir em detalhes para compor um grande painel inquietante. E no caso de Kubrick nenhum detalhe é dispensável, então desde a estrada do início, que se infiltra no mundo primitivo e desconhecido das montanhas, até a fuga de Wendy e Danny, em ascensão na colina de neve, tudo pode servir a leitura. E assim, The Shinning é uma maratona de detalhes mostrados, detalhes sutis e detalhes que podem ser só demência de espectador geek! Mas as inserções e cortes com significado são por demais intrigantes e sugerem decifração o tempo todo. A começar pelos lentos fades de cena a cena, com realidades que se infiltram umas nas outras em um tempo alternativo à velocidade dos cortes secos, impositivos.

Muito mais visual do que verbal, o filme acumula composições (ou charadas) gráficas que sugerem, mas não concluem. Como a cena do labirinto. A mesma distância aérea das cenas de abertura se repete quando Jack observa o labirinto e Wendy e Danny passeiam por lá. Um simples corte de cena parece conferir a Jack o poder da visão aérea, a visão de alguém que paira... Ou quando Danny pergunta a Tony por que ele não quer ir para o hotel. A resposta vem na famosa imagem do elevador.

Na primeira cena de Jack morando no hotel ele é visto pelo espelho. Espelhos e inversões são uma constante de significados no filme: a começar por Jack, entre o frenético e o catatônico. A mulher na banheira, nova e velha. As pessoas geralmente entrando em cena por portas de saída (exit). O clima de delírio é interrompido na "volta ao mundo real" com o noticiário visto por Halloran. O corte é tão brusco que parece um defeito! Na cena do banheiro vermelho, é flagrante a inversão física entre os personagens, quase como em uma carta de baralho. O diálogo também é bastante revelador. "O senhor sempre foi o zelador", diz o garçom.

Danny entra em pânico e Tony o conforta dizendo "lembre-se do que disse o sr. Halloran, são apenas imagens, como figuras de um livro". Mas o Overlook está repleto de imagens pelos recantos, halls e paredes. Jack trabalha entre duas grandes colunas repletas de fotos e parece sempre rodeado por imagens emolduradas. Na cena em que Wendy o acorda de um pesadelo, os quadros estão desfocados sobre sua cabeça. E o Overlook pode ser uma grande moldura que aprisiona. Uma grande armadilha de cruzamentos temporais.

The Shinning

Algumas sutilezas: o Overlook tem a mesma cor cinzenta da montanha, como uma camuflagem, e está repleto de estamparias indígenas (o hotel foi construído sobre um cemitério indígena, no livro). Wendy é apresentada lendo Apanhador nos Campos de Centeio, aquele em que o protagonista sonha em salvar as criancinhas por todos os meios de que dispõe. As janelas do hotel brilham (shine) e refletem de forma fantasmagórica a luz externa, um recurso bastante usado em filmes do gênero e no período (Burnt Offerings, Trágica Obsessão, p. ex.). Logo na entrevista de emprego, Jack tem uma das diversas fotos atrás de si. As gêmeas aparecem sempre pelas portas de saída (exit). A estampa de um guerreiro indígena em uma embalagem de fermento é vista às costas do sr. Halloran no depósito. A mesma embalagem também está às costas de Jack quando ele fica trancado. O Gold Room é dourado como o uísque. Antes de entrar no Gold Room, Jack aparece refletido no primeiro espelho do corredor, e no segundo, mas não no terceiro. A famosa estampa laranja do tapete onde Danny brinca, sugere um labirinto. Wendy também passa a ter visões, mas só no epílogo (influência do espaço e do convívio?). Além das frases: "Venderia minha alma por uma bebida", "O senhor sempre foi o zelador". 

Jack Torrance

Agora, a maior brincadeira fílmica, a maior artimanha sensorial pode ter sido sugerida na cena do bar, quando Jack esfrega o rosto e abre os olhos... O quê ele vê? Ele vê Lloyd, o barman! Mas antes, ele está olhando para a câmera (olhando para nós!) e o filme nos coloca subjetivamente no ponto-de-vista de um dos fantasmas que habita o Overlook!!! Um vez que acompanhamos o filme em uma obsessiva imersão – provocada especialmente pela insistente trilha atonal – somos levados pela câmera-olho em seus movimentos pairando suavemente, pelos corredores e sombras e portas, por cima dos ombros e pelas costas dos personagens. Mais do que nos fazer torcer pelo destino dos personagens, The Shinning nos identifica forçosamente com as almas que flutuam, observam, pairam e rodopiam pelo ambiente! Forever and ever.....

No elenco, habitualmente dirigido à mão-pesada por Kubrick, destacam-se em contraste, a simpatia de Scatman Crothers e a naturalidade do garoto Danny Lloyd. Shelley Duvall passou o diabo no processo extreme do diretor para compor a instabilidade de Wendy. Joe Turkel contribui com sua figura sinistra para o barman. Philip Stone trabalhara com Kubrick em Laranja Mecânica (o pai de Alex) e em Barry Lyndon. E resta a Jack Nicholson reforçar sua figura de malucão, herdada de Um Estranho no Ninho, e ele faz o que todo mundo espera dele em caretas, humor e semblantes sinistros.

Um pouco de timeline: Com o hotel em processo de fechamento para as férias, o bellboy ao lado da coluna está a serviço ou já é uma das aparições? (9:22'). O aviso a Danny (10:20''). Um manto fantasmagórico sobre o hotel (12:25''). O sr. Halloran explica sobre o shinning (19:10''). Jack no espelho (24:26''). O labirinto do Overlook (26:14''). Algo errado com Jack (31'). As gêmeas fazem contato (36:40''). Jack de novo no espelho (39'). A ruptura da família (47:30''). O barman Lloyd em cena (50:16''). Danny pede socorro a Halloran (56'). A mulher na banheira (57:20''). "É bom estar de volta, Lloyd" (1:07:17''). Tempos cronológicos e personagens se confundem (1:10'). Wendy descobre que Jack pirou de vez (1:19'). Machado na porta (1:38'). Careta ícone de Jack (1:40:38''). Cânticos macabros na trilha sonora (1:46'). Danny foge pelo labirinto (1:47').

• Piração de cinéfilo: Danny ouve a conversa dos pais como o Hal 9000 ouve os astronautas em 2001.
• Piração de cinéfilo 2: a sombra do helicóptero que aparecia em uma das cenas de abertura foi corrigida nas cópias atuais.
• A famosa frase "Here's Johnny" pode ter sido inspirada pelo famoso entrevistador Johnny Carson. Mas consta que também pode ser um personagem das animações que Danny assiste na TV (e reduzidas na edição final). O que justificaria, na percepção do garoto, o comportamento de "lobo mau" do pai enlouquecido.
• O citado Burnt Offerings tem um curioso link com The Shinning pois foi uma das inspirações para Stephen King escrever o romance.
• Ressalva pessoal: talvez Kubrick seja técnico e intelectual demais para um gênero que rende melhor na irregularidade, na "irresponsabilidade poética". Seja como for, The Shinning se tornou imprescindível ao cinema fantástico.

Black Phillip já sabia 😈😈😈😈😈

The Shinning

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