8 de fevereiro de 2019

Trilhas Sonoras - o cinema por vias musicais

É possível que poucos gêneros tenham dado tanta liberdade de invenção quanto no campo do fantástico. Escolha uma área específica de criação artística entre cinema, quadrinhos, música ou literatura e veja como o fantástico serviu à renovação, à invenção ou à originalidade de propostas só por permitir a inserção de uma sombrinha aqui, uma distorção narrativa ali, uma forma espectral à espreita.
"Filmes de terror precisam muito mais de música do que dramas convencionais", diz John Burlingame nas notas de Amityville Horror. E o Black Phillip faz aqui uma trajetória relâmpago de trilhas sonoras no cinema de terror. Gênero que sofreu mudanças radicais ao longo das décadas e produziu coisas muito malucas e sem paralelos mesmo considerando as evoluções criativas em linhas específicas como o jazz, a eletrônica ou a música clássica. Não é seleção de melhores nem preferências do editor. São só destaques que por algum motivo foram se instalando historicamente como importante em suas épocas.
  
1935 Bride of Frankenstein • Uma das trilhas mais importantes na sedimentação e exploração de linguagens possíveis ao acompanhamento musical de um filme. Nos anos 30 essa criação ainda estava em fase inicial e depois de King Kong os compositores começaram a inventar com mais intensidade no acompanhamento musical dos filmes. Franz Waxman explora em Bride uma quantidade muito grande de formas musicais, indo do suspense ao lírico. No caminho passa pelo humor macabro de Bottle Sequence, pela leveza do minueto de abertura (Prologue), e a beleza épica do tema principal conduzido por voz feminina em The Creation. Além de passagens mais pesadas como o mistério de Monster Entrance e o clima fúnebre de Processional March. Riquíssima em modelos musicais, The Bride of Frankenstein foi precursora de pelo menos trinta anos de música no cinema.

1945 Hangover Square • O compositor Bernard Herrmann tem neste suspense um exemplo notável de sua intenção em desenvolver a trilha sonora junto ao desenvolvimento dramático da película. Herrmann também começou aqui a explorar o efeito de stinger (motivo curto de surpresa). Melhor ainda, o personagem central é um compositor desequilibrado que escreve sua partitura entre seus delírios criminosos. No concerto de apresentação da peça, o teatro é tomado por chamas e enquanto os músicos fogem com seus instrumentos, o compositor permanece ao piano executando a peça até o final. Concerto Macabro para Piano e Orquestra foi gravado como suíte continua (doze minutos) em uma edição da RCA nos anos 70, dedicada às trilhas de Herrmann. E tem mais coisas sombrias como a abertura de Cidadão Kane e o explosivo tema do policial On Dangerous Ground.

1957 Dracula • Com um dos temas mais famosos do cinema, o compositor James Bernard emprega elementos góticos enfatizados pelos tímpanos e violinos dramáticos. A gravadora inglesa Silva Screen lançou esta coletânea excelente de filmes da Hammer lá pelos fim dos anos 90 contendo outras trilhas da série Drácula. O primeiro filme tem o antológico tema em versão original e mais umas quatro faixas em imbatível clima mortiço. Main Theme, Funeral in Carpathia, Inside Dracula´s Castle, Kiss of Living Death e Finale, somam mais de 12 minutos com a trilha do clássico da Hammer. As trilhas foram regravadas para a ocasião da coletânea, mas garantem a fidelidade às partituras originais. A edição ainda inclui música de Vampire Circus e o belo tema de Hands of the Ripper.

1958 Vertigo • Bernard Herrmann novamente em sua intenção irredutível de alinhar acompanhamento musical ao desenrolar dramático do filme tem em Um Corpo Que Cai, possivelmente seu maior momento. Os motivos circulares em intervalos de oitavas do tema principal viriam a definir temas de psicopatas e desequilíbrio emocional. Assim como o filme, a música de Vertigo é obsessiva e hipnótica. Mais do que em outras trilhas, as alternâncias entre altos e baixos musicais, quase uma marca do compositor, têm aqui função primordial na criação de ambiente. O destaque maior é o uso do Love Theme na sequência giratória do beijo, um dos grandes momentos do cinema na combinação de música associada ao significado narrativo. Na gloriosa versão do tema de amor dessa sequência, James Stewart finalmente traz de volta Kim Novak para o mundo dos vivos.

1960 Psicose • Mais uma vez o novaiorquino Bernard Herrmann marcou ponto na história com sua famosa trilha para cordas feita para o clássico de Hitchcock, divisor de águas na história do suspense e do terror. Assim como o filme, a trilha também teve sua inserção histórica. O acompanhamento aqui é intencionalmente claustrofóbico, intrusivo e irritante em sua repetição obsessiva. Como punhaladas sonoras. A mínima variação musical é quando Lila Crane entra nos aposentos da sra Bates. Essa edição da Unicorn/Kanchana é a gravação original. A trilha foi regravada posteriormente e lançada com uma capa bem mais bacana do que esta. 


1968 Le Boucher • Principal elemento desagregador na vidinha provinciana dos personagens do marcante suspense de Claude Chabrol, a trilha de Pierre Jansen é genial em sua utilização de referências eletroacústicas. Dos modernistas da música clássica à inserções de baixo elétrico referentes à cultura pop/rock de então, a trilha de O Açougueiro é incomparável, imprevisível e modernizou a música para suspense. Teve especial influência nos giallos italianos de década seguinte. A edição disponível pela série Ecoutez le Cinema traz a música em uma suite contínua de onze minutos. Jansen e o diretor Chabrol tiveram várias colaborações de excelente resultado musical como em La Decade Prodigieuse (também incluída na coletânea) e Les Biches. Jansen pode ser facilmente destacado como um dos maiores talentos talentos musicais que trabalharam para o cinema. 

1971 Macbeth • O grupo Third Ear Band iria produzir uma das trilhas sonoras mais originais e bizarras da história em sua mistura de tradição, instrumental acústico, elétrico e eletrônica. Lançados pelo selo Harvest foram naturalmente citados como um grupo de rock progressivo, mas o som deles é algo inclassificável. Somando à base típica dos grupos de rock (guitarra, baixo e bateria) instrumentos como oboé, sintetizador, violoncelo, conseguiram um amálgama sonoro sem paralelos. Em Macbeth muito da aura pesada do filme se deve à trilha, anasalada e obsessiva, constantemente nublada. O lírico oboé de Lady Macbeth é um dos poucos momentos de leveza da trilha. Mas a percussão em movimentos circulares cria uma atmosfera de constante opressão. Uma experiência musical bastante rara. Lançada em CD pelo selo inglês Beat Goes On Records.

1972 Cosa Avette Fatto a Solange • Ennio Morricone pega o modelo dos giallos (que ele mesmo havia inventado em O Pássaro das Plumas de Cristal) e o refina aqui. Assim, um belíssimo tema principal (vocalizado pela sempre esplêndida, incrível, maravilhosa Edda Dell´Orso, dos faroestes) faz contraste com atmosferas sonoras distorcidas e invenções musicais incomuns. Entre abstrações sonoras e temas próximos de jazz, ou jazz-rock considerando a época, Morricone produz combinações instrumentais bizarras como o trompete em surdina e cordas em Raccapricio, os andamentos incertos do walking bass de Una Tromba e La Sua Notte ou a abstração (percussão e cordas) de C´é Qualcuno Qui? Uma das tradições musicais do cinema giallo foi justamente os climas irreconhecíveis proporcionados por suas bizarras combinações instrumentais. Esta talvez não seja a melhor trilha de Morricone no gênero, mas marcou um ano áureo do giallo italiano.

1974 Let Sleeping Corpses Lie • No limite entre trilha musical e sonoplastia climática, a música de Giuliano Sorgini para este pioneiro filme de mortos-vivos é indescritível por sua mistura de órgãos, vozes e sussurros. O órgão solo de The Living Dead e os sussurros e gemidos em eco de Trance são pontos altos. Para situar o período, o tema principal John Dalton Street é um jazz-rock com ênfase rítmica e linhas melódicas executadas em cordas! Infelizmente o compositor não teve maior chance de trabalhos no cinema ficando preso a filmes de baixo orçamento e produções pouco notadas e restritas ao circuito cult. Fãs do gótico podem se aventurar sem medo nos climas fúnebres de uma trilha que tanto surpreende em sua simplicidade (pouco mais de 30 minutos) quanto em sua intensidade climática.

1975 Profondo Rosso • A aceleração do rock e a pulsação cardíaca dos baixos elétricos participavam como um dos principais elementos de imersão no estilizado suspense do diretor Dario Argento. O grupo Goblin faria uma abordagem muito original que seria seguida por diversas produções europeias posteriores. O jazzista Giorgio Gaslini iniciou a trilha de Profondo Rosso com algumas composições, mas coube ao Goblin a forma final, urgente e contemporânea com seu som hard-gótico-progressivo.

1976 A Profecia • Os cânticos satânicos de Jerry Goldsmith marcaram profundamente um dos maiores sucessos o cinema de terror. Versus Cristus, Ave Satani canta o coral logo no tema inicial. Para o contraponto humano, The Piper Dreams esbanja lirismo, mas o reinado musical é mesmo dos climas sombrios eficientíssimos como na modulações vocais de The Killer Storm, ou na assustadora The Dog´s AttackThe Omen deu a Goldsmith o único Oscar de sua carreira.


1976 Quien Puede Matar un Niño? • Modernista e ousada, a trilha do compositor argentino Waldo De Los Rios é responsável por sustentar incrivelmente bem o suspense cult do diretor Narciso Ibanez Serrador. Lançada como obra independente intitulada Apologia Sinfônica Del Terror, é musicalmente um trabalho sem precedentes no cinema. Seguindo o modelo dos thrillers dos anos 70, Waldo destaca um belo tema romântico para o casal protagonista e o cerca de ameaça e terror nas distorções e movimentos da orquestra. A forma musical só tem paralelo na música de vanguarda. É realmente impressionante o resultado que o compositor consegue aqui em temas como La Furia de Los Niños e La Mutacion com sua violência sonora e os "gritos" selvagens dos metais. Como Macbeth, esta também é uma experiência musical e cinematográfica única.

1978 Nosferatu • Subterrânea e espectral, as emanações sonoras da trilha do grupo Popol Vuh são equivalentes à estética mortiça do filme de Werner Herzog. O destaque imediato são dos cantos de sabor gregoriano que embasam os melhores momentos da trilha. Vozes e camadas eletrônicas são os elementos principais sempre em emissões lentas, mântricas e espectrais. As texturas eletrônicas de Die Nacht Der Himmel e On the Way são possivelmente os exercício mais ousados em atmosferas de terror já feitos para um filme. O resultado não tem similares nem na carreira do próprio grupo que fez outras trilhas geniais para Herzog como Aguirre e Coração de Cristal. A gravadora alemã SPV Records relançou as trilhas do Popol Vuh em edições expandidas. Nosferatu foi relançado em edição de 65 minutos.

1979 The Amityville Horror • Por muito tempo esta trilha foi considerada como a reutilização da que Lalo Schifrin havia feito para O Exorcista e havia sido descartada. Parece, mas não é. As semelhanças são por causa do predomínio de cordas e algumas passagens rítmicas. Mas Amityville Horror tem muito mais material musical. Exorcista era eminentemente rítmico e tenso. Aqui, só a canção de ninar com vozes infantis (tema principal) já faz toda a diferença no conjunto musical. Tem até um tema romântico (The Window) na imbatível tradição do compositor. Além de um sofisticadíssimo trabalho de composição para cordas na construção de climas sobrenaturais, ou na combinação de vozes e cordas como em Father Delaney. Insidiosa e expressionista, contribuiu demais no clima do famoso filme de Stuart Rosemberg. Lançada pelo selo próprio de Lalo Schifrin, Aleph Records.

1981 Paura Nella Citta Dei Morti Viventi • Entre o rock progressivo e cânticos apocalípticos a trilha de Fabio Frizzi fala perfeitamente aos extremos do cinema splatter. A lenta marcha com sintetizadores e solos de guitarra é um dos grandes temas de terror do período, a influência do rock (via Goblin) é perceptível, e Frizzi encontra a voz própria para o filme nos movimentos circulares, claustrofóbicos e nos corais. A parceria com o diretor Lucio Fulci vinha de Zumbi e, depois deste filme, seguiria em The Beyond e Manhattan Baby

1981 Poltergeist • Novamente o gênio de Jerry Goldsmith fala alto na personalidade do filme e na criação atmosférica que tanto tem importância no sustento do show. Como ele fizera em Alien, aqui a orquestra soa em vozes incomuns, irreconhecível em muitas passagens. E ainda acrescenta uma dose de intimismo impressionista para manter o elemento humano identificável em meio ao horror sonoro que domina o trabalho. Carol Anne´s Theme é dos mais belos temas do compositor e as atmosferas de It Knows What Scares You e Night of the Beast mostram o ponto de evolução a que Goldsmith havia chegado depois de anos compondo para filmes de suspense, horror e ficção. Os "jump-scares sonoros" de The Clown caracterizaram demais o filme e marcaram época como identidade sonora de filme de terror.

1985 Phenomena • Na era de ouro do technopop na cultura popular o grupo Goblin encontrou a encruzilhada entre o techno e o gótico para este que é um dos mais populares filmes de Dario Argento. Na edição expandida que traz versões alternativas dos temas, o cruzamento sonoro fica mais evidente como no piano  e marcações rítmicas do tema principal (versão 2). Vocais, ritmos sintéticos e simulação de cordas se equilibram em uma aura sonora inebriante, hipnótica. Os beats pesados de Sleepwalking acompanhavam os transes de Jeniffer Connely e Jennifer´s Friends tem leveza pop contrastante ao conjunto. Creditada ao Goblin, mas na verdade Phenomena reuniu o tecladista Claudio Simonetti e o baixista Fabio Pignatelli nas composições e gravações.

1994 Entrevista com o Vampiro • Um dos grandes talentos das trilhas contemporâneas, Elliot Goldenthal consagrou-se definitivamente com esta grande trilha sonora de múltiplas referências. A austeridade sinfônica de Born To Darkness é o tom da trilha. Incorporando construção tonal e abrindo espaço a atonalidade, Born To Darkness caracteriza e orienta o trabalho. No decorrer da trilha, Goldenthal incorpora tarantelas, influência barroca e exotismos instrumentais como Viola de Gamba, cravo e glass harmonica. Também é muito perceptível que no decorrer da trilha os temas românticos de tom lírico (Madeleine´s Lament) vão cedendo espaço a climas de terror mais acentuados e dramáticos como em Marche FunebreScent of Death ou Theatre Des Vampires. Repleta de invenções melódicas e performances virtuosas, a trilha compõe um rico e variado mundo de sombras.

2002 Mothman Prophecies • Riquíssima de texturas e efeitos sonoros a trilha de A Última Profecia da dupla eletrônica Tomandandy foi intencionalmente raciocinada para ficar no limite entre música e sound design. Muito detalhada e repleta de nuances como uma "mapa topográfico sonoro", Mothman Prophecies é composta por longas suítes climáticas. Os climas são evidentemente sombrios e ameaçadores, adequados ao filme, mas também fascinantes enquanto trabalho autônomo no campo da eletrônica com grandes momentos como Seeing Strange Things ou Zone of Fear. Lançado em CD duplo pelo selo Colosseum. O CD complementar inclui temas do grupo experimental King Black Acid e a faixa de encerramento do filme, Half Light, parceria do Tamandandy com o grupo Low. Um grande e rico painel de sons crepusculares.

2002 Cabin Fever • Em plena era das emissões digitais e amostragens MIDI na confecção de trilhas sonoras, o compositor Nathan Barr opta pela alternativa orgânica de seu violoncelo como principal elemento sonoro. Em uma abordagem minimalista, Nathan cria bases de violoncelo e acrescenta mais instrumentos conforme for se mostrando necessário à cena. Simples assim. O valor maior da trilha acaba sendo assim a postura intuitiva, unplugged e original. Cabin Fever se completa com alguns temas de Angelo Badalamenti em sua habitual construção ambiental e envolvente com predomínio de cordas. Temas como Red Love e Peter and Karen remetem inevitavelmente à temas como os de Blue Velvet, por exemplo. Disponível pelo selo La-La Land Records. 

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