"Trilha sonora é como um filme sem imagens". Quem disparou essa velha pérola depreciativa não entendeu que é justamente essa a graça da brincadeira. As trilhas são o local escuro do cinema antes do preenchimento com a imagem! É como acessar a dimensão do filme por outra via. No processo da "suspensão de descrença" – afinal sabemos que todo o filme é de mentirinha – a trilha musical tem função essencial em embalar nossos sentidos e nos fazer participar (para não dizer acreditar) no drama fake que se projeta. Aí vai mais um pouquinho de trilhas selecionadas do Black Phillip para dar sequência ao post anterior.
1947 The Ghost and Mrs Muir • Bernard Herrmann antes do reconhecimento como compositor de suspense embala este belo drama sobrenatural com sua costumeira eficácia. Alternando o tema principal, assombroso, solene e ameaçador a um tema romântico evocativo, a trilha combina o melhor das habilidades do compositor. Em um período de explorações musicais no qual as trilhas sonoras buscavam maior expressão no acompanhamento a um filme, a música de The Ghost and Mrs Muir teve sua importância. A edição aqui em destaque do selo Varese Sarabande é uma regravação feita por Elmer Bernstein em 1975.
1973 The Wicker Man • Trilha de influência celta para o cult dirigido por Franklin Schaeffer. Entre faixas ambientais e canções folk destaca-se a beleza de Corn Rigs, Lullaby e especialmente a leveza etérea de Willow Song. Em paralelo à produção do mercado no período é interessante ouvir relação entre Wicker Man e o som de grupos folk-rock como o Fairport Convention ou Incredible String Band, por exemplo. Única trilha feita pelo escritor e músico americano Paul Giovanni, o que acrescenta um toque extra de raridade ao trabalho. O destaque cult é da faixa The Thinker of Rhye, dueto entre Christopher Lee e Diane Cilento! E o tempo vai fazendo filme e trilha se tornarem clássicos imprescindíveis.
1971 The Abominable Dr Phibes • A atmosfera de alucinada nostalgia do cult dirigido por Robert Fuest deve muito à trilha musical de Basil Kirchin. A evocativa valsa tema principal se repete em várias leituras pela trilha em foma de ligeiras vinhetas. É meio chato ficar repetindo os termos "clássico" e "cult" o tempo todo, mas fazer o que? Esta é uma produção que merece os termos sem reservas. A versão da valsa pelo grupo de autômatos The Clockwork Wizards é um ícone cult, representativo de toda uma era do cinema pop! A qualidade sonora do CD é irregular devido às diversas procedências do material gravado, a abertura com War March of Priests de Mendelshon provavelmente foi gravada direto da película, mas a edição do selo Perseverance é de valor histórico acima de tudo.
1972 Perche Quelle Strane Gocce di Sangue Sul Corpo di Jennifer? • Romantismo e atonalidade marcaram os extremos sonoros do cinema giallo. Esta trilha de Bruno Nicolai é das mais legais e representativas do gênero. Do romantismo brega a misturas exóticas de instrumentos a trilha tem números musicais indescritíveis. Nem a plenitude psicodélica ou a excelência técnica dos músicos de jazz-rock produziram coisas como Night Visitor ou Living Nightmare. No contraste extremo, temos o tema romântico principal (Main Title) e Love Scene, temas easy listening kitsch que poderiam entrar em um programa da Hebe!
1977 Suspiria • Os "sussurros ensurdecedores" são a marca desta trilha do Goblin para um dos mais admirados filmes de Dario Argento. As edições antigas tiveram faixas do álbum Roller para completar o tempo do vinil e mais recentemente a Cinevox lançou edições ampliadas com versões alternativas dos temas principais. Apesar da escola progressiva ser facilmente identificável em temas como Markos e Black Forest, Suspiria é um dos trabalhos mais experimentais do Goblin. Os sussurros amplificados e a percussão insistente em Witch nem tem paralelos na carreira do grupo e a alternância entre a sutileza da vinheta principal ao massacre sonoro das percussões criam a desorientação sensorial e espacial que tanto caracterizou o filme.
1977 Shock • Depois de Deep Red, muitas trilhas de filmes italianos de terror optaram pelo rock progressivo. Shock foi uma delas. Encomendada ao grupo Libra, a trilha parece muito com música pra filme do Dario Argento, mas tem sua voz própria como deixa claro o intrincado tema principal de ritmos alternados e solos de sintetizador. Agora, a variedade musical apresentada aqui é coisa que o Goblin raramente buscou. Shock tem as invenções progressivas do tema principal, balada unplugged, piano gótico, uma irritante caixinha de música (Tema di Marco), experimentos em mixagem e registro de som, e acima de tudo a exuberante inventividade de uma era que não se repetiu. Veja o post.
1978 The Lord of the Rings • Antes da idolatrada trilogia de Peter Jackson, o visionário Ralph Bakshi havia tentado adaptar a saga de J.R.R. Tolkien para uma animação. Ficou só na primeira parte por falta de verba para completar. A trilha do veterano modernista Leonard Rosenman é um assombro de grandeza e colorido orquestral. Virtuosíssima em sua escrita e com passagens sombrias notáveis e corais macabros que rivalizam com os de Jerry Goldsmith para A Profecia! Destaque ao delicado coral infantil em Mithrandir.
1979 Stridulum • Uma das poucas coisas que se salva nesta ambiciosa e desajeitada produção italiana é a trilha de Franco Micallizzi (Trinity). Com um tema que faz clara aproximação à forma sonora de Assim Falou Zaratustra de Strauss, a trilha alterna passagens climáticas eletrônicas a beleza melódica pop e ritmos disco music. Some a isso instrumentais referentes à jazz e temos o correspondente sonoro ao ambicioso pastiche do filme! A diferença é que Micallizzi manda muito melhor que o diretor Giulio Paradisi e a trilha tem seu charme datado, mas divertido. Veja o post.
1980 The Elephant Man • O clima vitoriano dos espetáculos itinerantes e shows de aberrações é o tom da música de John Morris para o famoso drama de David Lynch. A atmosfera de "carrossel macabro" permeia todo o trabalho. Melancólica e evocativa, é uma trilha reclusa que evita exposição e procura se ocultar em sombra. Musicalmente remete aos clássicos românticos (tonalidade) em expressão orquestral. Mrs Kendall Theatre é um breve intervalo de leveza emocional em meio à delicadeza tétrica que caracteriza a trilha. A edição da Milan Records inclui o Adágio para Cordas de Samuel Barber.
1985 Day of Dead • Um trabalho característico dos meios de produção sonora de seu período e portanto lembrando o techno-pop dos anos 80. Day of Dead tem um senso de claustrofobia tão bom que caracterizou o terceiro filme de zumbis de George Romero de forma perfeita. A suíte de abertura é clássica com sua marcação rítmica irritante e quase subliminar na sugestão de confinamento. E mesmo passagens que serviriam a relaxamento como Walk To the Ritz ou o encerramento em On the Beach, soam sintéticas e desumanizadas. O CD duplo do selo La La Land traz a edição original do vinil e a ampliada com temas inéditos.
1989 La Chiesa • Trilha para The Church, direção de Michele Soavi e produção de Dario Argento. A extravagância pop de Keith Emerson investe aqui em sonoridades góticas em The Church, Prelude (Bach) e Possession com muito órgão acústico e clima macabro. Precisa de mais? Se precisar, até tem: o baixista do Goblin, Fabio Pignatelli compõe os demais temas para a trilha, na linha techno com marchas e climas eletrônicos. Destaca-se Possessione com sutil linha de baixo e sussurros demoníacos.
1991 Naked Lunch • Uma das preferidas do Felipe Preto! A mistura entre a força vital do free-jazz de Ornette Coleman e as elaborações orquestrais de Howard Shore, modelaram um novo formato musical em Naked Lunch. É uma tentação chamar de "interzone musical" temas como Interzone Suite, Dr Benway e o Main Title, que mixam equilibradamente as duas linguagens musicais. E não faltam as atmosferas soturnas que consagraram Howard Shore como "descendente" de Bernard Herrmann. Temas como Clark Nova Dies e Nothing Is True se encaixam naturalmente na história evolutiva do compositor de Scanners, A Mosca e Dead Ringers. Também inclui alguns temas originais de Coleman como Writeman. Uma trilha embriagada e convulsiva como o próprio cinema de Cronenberg.
1991 Cape Fear • Regravação da trilha original de Bernard Herrmann feita para o Cape Fear original (1962). Nesta atualização, Elmer Bernstein praticamente manteve intactas a estruturas para cordas em uma trilha que é claramente consequente de Psicose. As faixas Max e Kersek Killed, são visíveis paralelos com a trilha para Hitchcock em suas camadas de cordas combinadas. Os grupos de cordas estão bastante presentes criando um invejável efeito de confinamento espacial. Em The Fight e Houseboat, Bernstein acrescenta percussão e sopros para maior movimentação sonora. Mas curiosamente, a construção musical original ainda serviu muito bem a um thriller contemporâneo.
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