21 de abril de 2019

Body Horror

body horror

Meu corpo... sem as regras. Intervenções no corpo constituem um dos aspectos mais assustadores das narrativas de terror. O fascínio mórbido pela alteração das convenções de beleza física ou padrões biológicos vem de longe. Se na arte clássica foram buscadas formas e proporções corporais equilibradas na constituição do "modelo perfeito" coube às narrativas fantásticas a alteração das convenções para o tormento dos espectadores. Nosso próprio corpo como fonte do horror.

A alteração de convenções físicas, explorada desde o cadáver revivido de Mary Shelley, tem passagens inesquecíveis na literatura como os órgãos revoltados contra o dono em A Política do Corpo de Clive Barker e Um Delírio Metaléptico de Ray Bradbury, ou o episódio em Naked Lunch no qual o ânus de um sujeito começa a falar, depois a dar ordens e finalmente subverte a estrutura corporal do personagem! Além, claro, de A Metamorfose de Kafka, provavelmente a referência principal do pesadelo em transformação física na cultura moderna. Em A História da Feiura, Umberto Eco (citando Nietzsche), diz que o homem se coloca como a medida da perfeição. O feio é entendido como sinal e sintoma de degenerescência. Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda a espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição, tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor "feio".

A exploração visual das deformações e alterações corporais naturalmente renderia filmes memoráveis pela história do cinema, basta lembrar de Frankenstein (1931), A Mosca da Cabeça Branca (1958), Eyes Without a Face (1958), O Homem Elefante (1980), Enigma de Outro Mundo (1983) e Lobisomem Americano em Londres (1981) que causou sensação com os efeitos cruelmente "realistas" de Rick Baker. Sem esquecer a mão possuída de Ash em Evil Dead 2 (1987)! A animação Akira (1988) também teve sua inserção permanente em nossa memória, pelas grotescas deformações do epílogo!
Para o cinema contemporâneo, David Cronenberg pode ser o grande pioneiro na linha do body horror. Seu delirante Videodrome (1983) e a clássica refilmagem The Fly (1986) marcaram época nas bilheterias com sua escatologia e o ciberpunk Tetsuo anunciou as novas ousadias via cinema independente. Por sua vez o body horror dos anos 2000 está testando os limites de aceitação pelo público, alguns fundamentando seus excessos como em Martyrs, ou entrando pelo drama como em A Pele Que Habito, ou apenas exercitando os efeitos de próteses e maquiagem como em Gurotesuku ou District 9.

Para o Black Phillip, "o clássico"  do body horror parece que ainda precisa ser feito... 
Confira 20 destaques...
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1958 The H Man (O Homem da Bomba H) • Depois de exposto a radiação, marginal sofre o derretimento de seu corpo tornando-se uma gosma esverdeada e passa a contaminar pessoas. Modesta ficção dirigida pelo prolífico Ishiro Honda que mistura elementos diversos: investigação policial, mistérios, falatórios explicativos, situações de film noir e até números musicais. O centro do show naturalmente são os derretimentos corporais (com efeitos de bolinha de sabão) e o monstro verde que termina sendo caçado nos subterrâneos da cidade. Pena que apareça pouco. 😈😈

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1977 Incredible Melting Man (O Incrível Homem Que Derreteu) • Famoso trash dos anos 70. Um astronauta exposto a radiações solares fica em tratamento no retorno à Terra. O derretimento de sua pele e carne o enlouquece e ele sai matando geral em busca dos responsáveis pela missão. Esse é o roteiro. Risível sem intenção (assim parece) em diversas partes (como a cabeça decepada boiando no regato!), virou cult pela pobreza geral de sua história de 15 minutos esticada em um longa. Bons efeitos de Rick Baker. 😈😈

incrível homem que derreteu
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1985 The Stuff (A Coisa) • Sátira à indústria alimentícia dirigida por um dos maiores do cinema B, Larry Cohen. Uma substância comercializada em massa é sucesso no mercado de guloseimas mas sua constituição é um segredo guardado. Quando um garoto descobre o segredo da composição passa a ser perseguido e com a ajuda de um investigador precisa alertar autoridades sobre a substância que causa mutação em quem a ingere. Bons efeitos em clima de ficção B e uma narrativa que progressivamente vai se entregando ao humor nonsense. 😈😈😈

a coisa
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1986 The Fly (A Mosca) • Consolidação do nome de David Cronenberg com este sucesso de bilheteria  que recontava a história do filme de 1958 com Vincent Price. Jeff Goldblum é um cientista desenvolvendo um projeto de teletransporte e que acidentalmente funde seu corpo com o de uma mosca ao testar o experimento. Fundamentando o filme na gradual transformação do protagonista, The Fly explora a situação básica do gênero body horror ao expor a platéia tanto ao escatológico  da transformação física quanto à transformação mental do cientista. Um show de efeitos de Chris Walas em seus excessos nauseantes em uma impiedosa tragédia como só Cronenberg teria a cara-de-pau de realizar. 😈😈😈😈

the fly
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1987 Street Trash • Comerciante de bebidas vende o suspeito uísque Viper a mendigos. A bebida causa derretimentos corporais! Insuperável clássico dos filmes podres. Veja no post.
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1988 Slime City (A Maldição de Zachary) • A maldição do Zacarias!?! Terrorzinho amador dos anos 80. Alex é um artista plástico que se muda para um condomínio suspeito onde conhece vizinhos bem estranhos. Sem que perceba, ele é usado para o renascimento do espírito de Zachary e no processo seu corpo se cobre de corrimentos e melecas coloridas. Alex só consegue reverter esse estado através de assassinatos e contato com sangue alheio! Na linha escrota de Street Trash, mas sem a mesma inventividade. Uma comédia pelos motivos errados, elenco amador, desleixo geral. Não perca o final com o cérebro de Zachary fugindo da cabeça decepada!!! 😈

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1993 Body Melt • Uma nova vitamina é distribuída como amostra em uma comunidade. Um dos componentes químicos na novo produto causa alucinações e derretimentos corporais! Procurando satirizar a mania moderna dos centros de saúde e a cultura da perfeição corporal, Body Melt é ágil e divertido, mas se perde na profusão de ideias e possibilidades. Repleto de efeitos grotescos é um amalucado precursor direto do body horror contemporâneo. Distribuído em VHS como Corrosão, Ameaça em Seu Corpo. 😈😈

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2002 Cabin Fever • Grupo de amigos em férias numa região florestal é contaminado por um vírus que causa decomposições no corpo. Cabin Fever sempre me pareceu ter um roteiro sério, mas que foi filmado no maior esculacho. Primeiro filme de Eli Roth, seguindo a linha Tarantino das "fan references", citações diversas e auto-indulgência constante e quando entra o garoto Dennis gritando "pankaaaakes", Cabin Fever acerta o alvo, mas acho que é o alvo errado... 😈😈😈

cabin fever
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2002 Dans Ma Peau • Esther vai a uma festa com a amiga e ao se perder pelo jardim escuro do casarão fere a perna em algumas ferragens. O que seria alarmante passa a ser fascinante para Esther e ela começa a apreciar a evolução do ferimento, produz uns arranhões extras e finalmente chega ao extremo de provar o gosto de sua própria carne e sangue!!! Seus conflitos com colegas de trabalho e o namorado (Laurent Lucas de Calvaire), indicam que a transformação ocorre em nível psicológico. Dirigido, escrito e estrelado por Marina de Van, Dans Ma Peau é um drama/terror curioso, doentio e interessante, mas depois de uma hora de narrativa o filme precisa de algo mais além dos delírios da protagonista... 😈😈😈

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2002 May • A jovem May tem problemas de adaptação e comportamento desde a infância e relacionamento com a mãe dominadora. Na idade adulta passa por desilusões amorosas diversas, agravadas por sua dificuldade de comunicação, gostos alternativos e incompreensão dos que a rodeiam. Sem compreensão e sem amigos a jovem ruma ao colapso e decide "fazer seu próprio amigo" com as partes mais interessantes das pessoas que conhece!!! May é uma espécie de bomba-relógio criada pelo meio em que vive, como Carrie, Max Cady e os snipers escolares! Genial estudo de comportamento que se divide no drama da primeira parte e terror na segunda, sempre com um toque de humor anárquico e sustentado pela incrível atuação de Angela Bettis. Primeiro longa do diretor Lucky McKee que faria A Floresta e The Woman. 😈😈😈

may
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2006 Taxidermia • Drama surreal sobre três gerações (avô, filho, neto) obcecados pelos limites das capacidades corporais. Satírico, anárquico, vanguardista, escatológico. Veja no post.
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2008 Martyrs • Garotas encarceradas são submetidas uma infinita agonia física. Um caso raro de excesso com fundamento mais sério do que a média. Veja o post.
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2009 Frozen • Val Kilmer é um cientista que descobre um mamute em uma geleira descongelada, mas o animal libera um parasita que se multiplica nos corpos dos pesquisadores causando feridas e loucura. A nova equipe de estudantes (da qual participa a filha de Kilmer) ficará de quarentena no local até que se descubra uma forma de reter a proliferação do parasita. Terror na média corriqueira da produção americana. Tem a seu favor a ótima atmosfera nos ambientes fechados e o medo agoniante pelo parasita invasor. Visível variação de Enigma do Outro Mundo. Título alternativo The Thaw. 😈😈😈

Frozen
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2012 Thanatomorphose • Sem motivo aparente, a jovem Laura tem seu corpo progressivamente tomado por hematomas e decomposição. Unhas, dentes e cabelos começam a cair e a carne a apodrecer como em um processo pós-morte! Gratuito, vazio, escatológico e arrastado exercício em cinema amador. Só deve ter valido a pena à equipe que exercitou os efeitos. 💣

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2012 Antiviral • Jovem funcionário de uma empresa bioquímica trafica células para o mercado da pirataria. Satírico, doentio e incômodo por sua visão amarga de deficiências sociais. Dirigido por Brandon Cronenberg, filho de David. Veja o post.
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2012 Excision • Pauline é a garota mais desajustada do mundo. É inteligentíssima mas desinteressante para sua comunidade escolar, tanto física quanto intelectualmente. Tem uma mãe conservadora e um pai desatento. Suas preocupações com o corpo a levam a delírios sangrentos de mutilação e um mórbido interesse por órgãos e instrumentos cirúrgicos em sua aspiração à medicina! Entre o drama sério e a comédia nerd, Excision é um bom exemplo do "cinema sem noção" contemporâneo. Entrecortado de cenas sangrentas ou chocantes (a do aborto é especialmente excessiva em seu humor escroto). No elenco temos Traci Lords como a mãe controladora, John Waters como um padre orientador e Malcolm McDowell como professor! Pobre Pauline! 😈😈😈

excision
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2012 American Mary • Jovem estudante de medicina descobre um rentável mercado alternativo de serviços de alteração corporal! Satírica e por vezes indigesta produção canadense. Veja o post.
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2013 Contracted • Uma infecção transmitida por relação sexual pode levar seis dias para dizimar a cidade e quando Samantha conhece o misterioso BJ em uma festa e tem uma relação com ele, contrai a misteriosa doença que leva a uma medonha degeneração corporal e depois, mental. Suspense mediano, que se esforça na escatologia e acompanha três dias da degeneração física de Samantha, sem poupar detalhes, nojinhos e vermes brotando do corpo. Mas para ver o estrago até o fim (os seis dias) será preciso ver Contracted: Phase II (2015) contando a desgraça de Riley, que teve relações com Samantha no filme 1 e agora está na caça de BJ, um maníaco que intencionalmente espalha a doença para o máximo de pessoas possível. Tudo muito gratuito e sem noção! 💣

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2015 Bite • A jovem Casey passa por um período de crise em sua gravidez inesperada e casamento às pressas. Em uma viagem ao México com duas amigas para um relax, é infectada pela picada de um inseto em um banho de lagoa. De volta ao lar, Casey começa a passar por uma medonha transformação corporal: seu organismo parece estar servindo à incubação de ovos e a transformação atinge seu psicológico. Casey se torna agressiva e vai matando os que se aproximam. Seu apartamento é tomado por líquidos, gosmas e teias na construção de um imenso casulo! Terror canadense mediano, repleto de nojinhos, vômitos e feridas sobre a pele. Tecnicamente é muito bom, mas a direção convencional e o roteiro previsível prejudicam. Os personagens chatos também não causam maior entusiasmo. Visivelmente inspirado em A Mosca de Cronenberg. 😈😈

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2014 Goodnight Mommy • Lucas e Elias são dois adolescentes vivendo em um casarão de campo. Quando sua mãe retorna, tendo a face coberta de bandagens por um tratamento após um acidente, os meninos precisam se adaptar às suas necessidades e exigências. Mas começam a desconfiar que não foi a verdadeira mãe que voltou par acasa! Um conflito se instaura lentamente entre eles e as consequências progridem à violência física com os garotos tomando a iniciativa e subjugando a mãe. Produção austríaca que faz do mistério seu elemento básico. Simbólico e fantasioso, é um filme de pistas difíceis (como a cena da mãe despida na floresta e ocultando a face) que mescla o espiritual e o material sutilmente em sua narrativa. Pode ter influência de The Other (A Inocente Face do Terror). 😈😈😈

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