23 de junho de 2020

A Maldição de Morricone


Por um punhado de horror! Ennio Morricone foi um dos compositores mais conhecidos e respeitados do cinema e de sua geração, mas curiosamente, mesmo depois de uns 50 anos de atividade, ainda é sub-referenciado em seu trabalho. Geralmente o associam aos faroestes-spaguetti e o citam como o compositor de A Missão. Também fez Cinema Paradiso... e é isso aí! Às vezes alguém lembra de Os Intocáveis...

Formado na conceituada Academia de Santa Cecília em 1954, o compositor arranjador, maestro e trompetista, iniciou compondo peças acadêmicas e arranjando para o mercado pop italiano em meados dos anos 50. As visitas a oratórios e corais, guiadas por sua mãe, tiveram influência decisiva na percepção musical do jovem Morricone, o que explica muito de sua eficiência em hinos e cânones de evolução, assim como sua predileção por Bach.

A trilha sonora para Il Federale (O Fascista) foi sua estréia no cinema em 1961 e com o sucesso de Por Um Punhado de Dólares (1964) e os filmes seguintes de Sergio Leone, firmou-se como um dos mais influentes compositores do cinema moderno. E considerando a riqueza da fervura produtiva nos anos 60 e 70, é notável a quantidade de gêneros que o compositor teve à disposição. De eróticos e psicodélicos a thrillers e épicos o catálogo do maestro italiano é dos mais notáveis da história do cinema. Sempre inventivo e disposto a ousadias sonoras vanguardistas, Morricone teve nos filmes de terror e giallos dos anos 70 um fértil terreno de exploração musical. 

Pois então, Black Phillip levanta aqui uma retrospectiva de 20 títulos do que Morricone fez no terror/suspense/fantástico.


1965 Amanti D'oltretomba (Nightmare Castle) • Primeiro terror na carreira do compositor depois de comédias, dramas e faroestes. Em um período em que Morricone experimentava em modelos fílmicos, este gótico estrelado por Barbara Steele serviu a exercícios musicais como arranjos atonais para cordas e uma espectral peça coral camerística. O tema romântico, em modo valsinha, já antecipava as árias líricas que seriam uma das marcas mais fortes do compositor. O destaque gótico vai para os trovejantes temas para órgão.

1968 Un Tranquilo Posto di Campagna • A música como efeito especial! Franco Nero pode não estar sozinho na mansão campestre que escolheu para passar uma temporada. Pode ser loucura dele, mas pode ser tudo real também e as vocalizações de Edda Dell'Orso corporificam os lamentos fantasmagóricos que sugerem alguma presença sobrenatural em cena. Com participação do grupo de vanguarda Nouva Consonanza, que Morricone integrou no período, Um Tranquilo Posto é uma de suas trilhas mais arrojadas na transcendência do comum. Algo está acontecendo além das imagens, "atrás das imagens", e esse "algo" é revelado na música. Veja o post do filme.

1969 Bird with Crystal Plumage • Entre as muitas virtudes deste primeiro suspense de Dario Argento está a trilha de Morricone configurando o modelo sonoro que seria regra para os giallos: um tema romântico contrastando a atmosferas bizarras. Morricone era amigo pessoal de Salvatore Argento, pai de Dario, e quando o jovem cineasta se lançou em sua primeira direção, Morricone se ofereceu como compositor (giorni d'oro!). Do romântico tema principal, um acalanto com inserções psicodélicas, a abstrações sonoras, alguns temas incluem criações minimalistas como o batimento cardíaco e gemidos do tema título, L'ucello Dalle Piume de Cristallo, ou a abstração espacial de La Citta Si Risveglia. Uma trilha de experimentação, na fronteira entre composição melódica, a vanguarda e antecipando conceitos de sound design. O romantismo bossa-nova de Non Rimane Piu Nessuno é um segundo tema melódico.

1971 Una Lucertola Con La Pelle di Donna • Uma trilha em psicodelismo macabro como só esse período poderia produzir! E somente a genialidade do compositor nos proporcionaria o "suspense psicodélico" de Sfinge, os andamentos alternados de La Lucertolla ou ainda a dispersão romântica de Solo Sulla Pelle. Como muitos títulos desta seleção, uma trilha que representa um grau de inventividade como só esse período proporcionou. Foi o primeiro filme de horror na carreira de Florinda Bolkan, que voltaria ao fantástico/alternativo em outras ocasiões.

1971 Cat of Nine Tails • Seguindo naturalmente o modelo consagrado em Pássaro das Plumas de Cristal, diretor e compositor voltaram mais afinados neste thriller. O tema principal é um melancólico acalanto, uma canção de ninar com vocalização e os demais, trazem improvisos em baixo elétrico na criação de um universo sonoro sufocante. O efeito ambiental dos baixos opressivos, já explorado por outros compositores, mais notadamente por Martial Solal na música de outro clássico suspense, Le Boucher (O Açougueiro, 1969), cria a adequada atmosfera de interferência sensorial essencial às propostas de Argento. A suite experimental 1970 é um dos pontos altos com sua dispersão espacial vanguardista entre sussurros/gemidos e a pulsação cardíaca do baixo em descompasso.


1971 La Corta Notte Delle Bambole di Vetro • Primeiro filme do subestimado Aldo Lado (Ultimo Treno Della Notte). Agoniante suspense sobre um homem reconhecido como morto, mas ainda consciente nos leitos do necrotério! Enquanto tenta relembrar os fatos que o levaram a esse momento, a trilha sonora promove uma camada incômoda de dissonâncias para cordas e vozes entre sussurros e gemidos em um dos temas mais macabros do compositor. Mesmo a valsa triste (Valzer), que serve de tema romântico, carrega na palidez mortiça que caracteriza a narrativa. Um filme e trilha tentando variações fora dos padrões dos giallos e do suspense em geral.

1971 Occhi Freddi Della Paura • Este suspense provavelmente baseado em Horas de Desespero de William Wyler, teve trilha de jazz em modo freak. Marcado por solos assurdinados de trompete e distorções abafadas de guitarra como elemento sonoro principal. De sopros a walking bass, ou destaque a percussão minimalista, a trilha é uma variação insana em free jazz.

1971 La Tarantola Dal Ventre Nero • Outro giallo exemplar em seus mistérios de assassinatos indecifráveis. Morricone no auge da força criativa passeava com habilidade e propriedade pelos modelos do gênero exibindo desenvoltura às necessidades da trama: um tema principal sensual com a imprescindível Edda Dell'Orso (Coiffeur Pour Dames). Um tema romântico para o casal protagonista (L'Abraccio Caldo della Tarantula). E muitas abstrações experimentais, como na faixa título, e combinações instrumentais incomuns como nos pizzicatos alucinados de Nell'Ultima Stanza ou os andamentos free de Col Cuore in Golla ou ainda as aflitivas "desafinações" de Ventre Nero. Apesar da insistência atonal, é uma das trilhas mais interessantes no gênero em sua variedade sonora. Mais interessante é que representa um período de saudável exploração, entre o pop e a vanguarda, na constituição de um produto destinado a consumo popular.

1972 Diavollo Nel Cervello • Notável suspense que funciona como uma espécie de Rashomon do giallo no qual cada revelação serve a uma versão diferente da realidade. Com um tema principal comovente e evocativo a trilha faz uso recorrente de Fur Elise como tema infantil. Composições como Viaggio e La Ragione Il Cuore L'Amore (tema do filme) são temas pop-românticos entre os evergreens do compositor e muito presentes em coletâneas. Os demais, fazem variações do material harmônico principal, criando um curioso painel de "claustrofobia romântica", hipnótica em sua ciranda repetitiva.

1972 Cosa Avete Fatto a Solange? • Sempre que alguém se referir a um determinado tema como "um dos mais belos temas" do compositor, vai parecer redundância. Mas fazer o quê? Esta trilha é outra das que tem um dos mais belos temas compostos por Morricone e com a voz mais que perfeita de Edda Dell'Orso. Cumpre o modelo do giallo (apesar do filme não se enquadrar a rigor no gênero) com um lírico tema central alternado a climas variados. Entre diversos modelos musicais alternados de faixa a faixa, temos as dissonâncias claustrofóbicas de Racapriccio, ou a suspensão indefinida de Fine di Solange. Mas nem tudo é vanguardista aqui: a introspecção de Anche Un Quarteto Per Lei e do órgão acústico de Cadenze, ou ainda o estranho swing de Ostinazione Al Limone, navegam por linhas melódicas tonais. Uma das trilhas mais variadas e acessíveis de Morricone no suspense. Curiosidade trivial: Solange é Camile Keaton de A Vingança de Jennifer.


1974 Four Flies on Grey Velvet • Morricone finaliza a trilogia dos bichos de Argento com uma trilha voltada ao rock. Ou jazz-rock no caso, com sua profusão de ritmos de tempos alternados e bizarrices que lembram algo dos faroestes com gritos e excentricidades de percussão como no Main Title. O destaque maior é do tema Comme un Madrigale, angelical em seu coral etéreo e introspecção noturna.

1974 L'Anticristo • Majestoso e ascendente, o tema principal deste terror B – consequente do sucesso de filmes de possessão pós O Exorcista – é um solo para órgão acústico em ascensões barrocas (La Luce). O contraponto "diabólico" são naturalmente os temas de difusões para cordas em virtuosismos paganinianos como Il Buio, para as cenas de possessão e suspense. Para caracterizar a época, um tema lounge em jazz-pop é inserido em uma cena de reunião festiva. Um daqueles casos curiosos em que a trilha é melhor do que o filme que a encomendou.

1974 Spasmo • Mais uma trilha que segue os modelos musicais do giallo (que o próprio compositor havia estabelecido em Bird With Crystal Plumage), aqui temos dois belos temas líricos (Bambole e Spasmo) que se alternam a atmosferas bizarras das variações chamadas Stress Infinito. Considerando essa receita básica das trilhas dos giallos, Spasmo tem atmosferas sonoras das mais estranhas já compostas por Morricone. Em combinações incomuns que não remetem a modelos claros (seja no popular ou no clássico) nas pontilhações de cordas em eco, noises de guitarra, baixos esparsos e ruídos indefinidos, as variações da citada Stress Infinito são algo entre a experimentação sonora e a agonia emocional.

1975 L'Ultimo Treno Della Notte • Em 1974 a animação Il Giro Del Mondo Degli Inamoratti di Peinet recebeu tema principal composto por Morricone. Forse Basta foi um de seus mais comoventes e líricos momentos e que, curiosamente, acabou reutilizado neste suspense barra-pesada, entre os mais conceituados de seu gênero. Na ideia do contra-ponto temático que justapunha tema romântico a tensão violenta (que Sergio Leone tão bem utilizou nos faroestes), o tema é um claro lamento pelas vítimas, e sua força melódica permeia todo o filme. Alguns exploram formas folclóricas como em Tema Solitudine. Os momentos principais são mesmo o tema inicial e o insidioso tema título (L'ultimo Treno Della Notte) para harmônica, que assombra a película entoado por ninguém menos que Franco de Gemini, o homem da harmônica de Era Uma Vez no Oeste e proprietário fundador da Beat Records, selo italiano especializado em trilhas sonoras. Veja o post do filme

1978 L´Immoralitá • Herdando estruturas harmônicas de Cosí Comme Sei (um dos grandes momentos românticos do compositor) as delicadas melodias em piano neste suspense criam uma aura sonora de introspecção e suspensão quase psicodélicas. A inocência confrontada (e contaminada) pela perversão é a tônica base do filme, e a trilha faz da suspensão infantilizada do tema Perche Simona? sua voz principal. Variações ao pop servem à sintonia de época. Uma trilha modesta mas com um incrível poder encantatório.

1982 Extrasensorial • Dirigido por Alberto de Martino, este thriller é uma pálida tentativa de seguir o modelo dos filmes de Brian de Palma. Nem é ruim, mas o problema é ter o horrível Michael Moriarty como protagonista e ainda fazendo gêmeos! A trilha é uma variação em soft-jazz bastante incomum, mesmo na carreira do compositor. Difícil apontar similares à trilha de Extrasensorial em sua profusão de passagens reminiscentes e "suavemente obsessivas" como na valsa-pop principal (que guarda relações com o posterior tema de Frantic) ou na elegante embriaguez de Macabre Walz. A faixa Mirrors e as sutilezas de tensão em Sinister aproximam a trilha de um suspense mais tradicional.

1982 The Thing • Conta-se que Morricone ficou bastante indeciso em como musicar este terror de efeitos explícitos ao ler o roteiro. A saída foi se basear nas trilhas do próprio diretor John Carpenter e compor uma série de temas alternativos que seriam utilizados, à escolha do diretor, conforme a necessidade. Carpenter sintomaticamente, optou pelo que mais se parecia com suas próprias composições de pulsações eletrônicas (Humanity 2). Desolação e mistério são a marca da trilha e da atmosfera geral, como sugerem os contrastes para as cordas logo na abertura em Humanity (a visita às instalações abandonadas). A audição da trilha em separado revela outras nuances musicais que o filme dispensou como as inserções eletrônicas de Sterilization ou as evoluções sonoras em Bestiality e até um pouco de Bernard Herrmann nas alternâncias de cordas em Solitudine.

1994 Wolf • Trilha boa. Filme ruim. O equívoco cênico do filme de Mike Nichols condenou sua trilha a um injusto destino. Wolf tem nuances orquestrais que se perderam totalmente na tela e até seu belo tema para saxofone (The Barn) quase nem se ouve na película. Em suas sutilezas e tonalidades noturnas, é um trilha que investe em extremos sugestivos e linguagem orquestral com evidente predomínio trágico, já definido em Wolf and LoveThe Moon soa impressionista em suas sugestões, Confirmed Doubts é gótica em seu clima sombrio e Chase é puro desespero em sua dinâmica. Um pouco longa, mas uma trilha rica de timbres e sugestões e que merece audição destacada do filme.

1996 Stendhal Syndrome • A aguardada volta da parceria entre Argento e Morricone não rendeu tudo o que poderia. Outros tempos... Referenciando o formato dos velhos giallos, a trilha faz uma revisão à "canção de ninar" da trilogia dos bichos e a contrasta a temas dissonantes para cordas. Morricone, à época, não era mais o ativista da vanguarda e sua escrita orquestral navega por linhas mais próximas à tonalidade. Mesmo a inserção de baixos elétricos em passagens de tensão é bastante discreta e sem a expressão dos filmes anteriores de Argento.

1998 Phantom of the Opera • Outra parceria entre Argento-Morricone. Em linguagem orquestral a trilha remete ao romantismo clássico na sua maior parte e sublinha a ação do filme em frequente sincronia com pelo menos um grande momento que é o romântico tema principal para cordas. Pena que o filme não tenha correspondido à expectativa. De alguma forma as virtudes delirantes do diretor não se encaixaram às necessidades formais dessa história clássica e a trilha acabou dependendo de apreciação em separado.

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