19 de abril de 2020

A Sociedade Secreta do Cult Movie!

eraserhead

A hora dos esquisitões! Em inglês exquisit quer dizer peculiar, distinto, de poucos similares. Em português o termo ganha um significado de segregação, quase de exclusão. Mas para bom entendedor "esquisito" pode ser uma virtude alternativa das mais bem vindas!
Durante e a história do cinema, a busca pelo gosto padrão das massas sempre foi o norteador da produção. Os filmes têm que se pagar nas bilheterias e assim quanto mais gente gostar melhor. Mas temos a parcela da produção que prefere "entrar pela janela" e deixar a porta para o convencionalismo. Aqueles que arriscam produções mais ousadas em alternativas de linguagem e experimentos estéticos distintos.

Além desses virtuosos aventureiros tem também os casos de filme que deveriam ter sido convencionais e ficaram desconjuntados por motivos diversos (cortes de censura, orçamento acabou, produção mudou de orientação no meio do caminho, etc etc). Seja no caso 1 ou no caso 2, os resultados fora do padrão ficaram perdidos no espaço intermediário entre a exposição adequada ao mercado ou à espera de reconhecimento algum-dia-quem-sabe...

the keep

E essa parcela de produções, que de alguma forma encontrou uma, digamos, nova forma, uma forma intermediária entre o modelo clássico e o experimento, conseguiu seu espaço sob o rótulo de cult movie, e dependerá sempre de uma disposição igualmente diferenciada para sua devida apreciação. Se essa citada "nova forma" aconteceu por talento do realizador ou por mero acidente, aí a discussão é outra. Mas veja, por exemplo The Keep. Lembra? Fortaleza Infernal, 1983, direção Michael Mann, fácil de achar nos tempos do VHS (CIC Vídeo). É sobre grupo de soldados alemães que chega a uma vila na Baviera e se instala em uma fortaleza que mantém presa lá dentro uma entidade maligna. Pois então esse filme é uma reunião de coisas boas, só que alinhadas de forma muito estranha. Não é bom. Também não é ruim. E de alguma forma ele consegue configurar o fascínio básico do fantástico. Então nós o referenciamos como cult

Outro exemplo é O Farol do Fim do Mundo, aventura baseada em Julio Verne e estrelada por Kirk Douglas. É um exemplo perfeito do filme que escapou à fôrma e só a disposição cult para curtir sua esquisitice. Pra simplificar a conversa, veja o exemplo de Maximum Overdrive! Clássico exemplo do "ruim que é bom"!

Mais um? Le Orme, 1975. Mistura de ficção científica com fantasia. É meio lento e pouquíssimo citado. Mas a lerdeza narrativa cria um estado mental único na percepção proposta pelo filme que envolve experiências com a memória da protagonista. Então você tem que ser muito fã dos filmes da época ou muito fã da Florinda Bolkan para curtir a leveza onírica dessa obra. Não é bom. Nem é ruim. Então, está testado e aprovado como cult. Um filme destinado a compreensão diferenciada fora do senso comum cinematográfico.

O cult também é um fenômeno que ocorre de meados dos anos 50 em diante, quando as vias de distribuição de cinema se ampliaram em circuitos alternativos como drive-ins, sessões especiais fora dos horários habituais e quando a cultura jovem começou a receber atenção da industria cultural. Assim tivemos os filmes de rock´n´roll, as invasões alienígenas, a delinquência juvenil, enfim toda a cultura pop que se sedimentaria no imaginário coletivo por via da produção norte-americana. Os caras são tão ligeiros que até seu lixo vira produto! 

Basicamente, se um filme não era notado em seu período de distribuição comercial e só posteriormente viria a ser respeitado (ou ao menos reconhecido), esse é um cult! Um filme que por alguma configuração particular seria apreciado por minorias. Como ocorreu com A Noite dos Mortos Vivos, Carnival of SoulsMórbida Curiosidade ou Eraserhead. E então vieram os casos de cults que se tornariam clássicos como Rock Horror Show que virou fenômeno com as plateias cantando as letras junto à projeção, simulando as coreografias das danças e se vestindo como os personagens. Tornou-se um evento, precursor dos fan-happenings. Também é interessante que o fenômeno se fortaleça na contra-cultura (anos 60, 70), quando os valores fora do padrão estabelecido eram reconhecidos como virtude, conflitando com o que ditava a indústria cultural.

peeping tom

Como sempre acontece, com o tempo a popularização do termo deturpou seu significado original e todo mundo começou a chamar de cult qualquer coisa que fosse alheia ao padrão comercial. Não é mainstream? Então é cult! E o cinema por sua vez também começou a investir conscientemente no alternativo. E aí vieram irmãos Cohen, Almodovar, Lars Von Trier e David Lynch passou a ser abertamente elogiado. Posteriormente com os públicos formados e suficientemente informados, o fenômeno ocorreu mais rapidamente. Blade Runner, que foi incompreendido na estreia, tornou-se adorado logo depois. Cult de massa! Assim como, Veludo Azul que lotou salas de exibição em sua época sem precisar esperar por fama posterior! O drama Bagdad Café e o neo-western Straight To Hell circularam bastante em cineclubes nos anos 80. Alguns cults voltavam ao cartaz com certa regularidade em nossas telas em tempos de circuito alternativo, como O InquilinoA Dança dos VampirosFlesh for Frankenstein.

No período do VHS era bem mais fácil o filme alcançar status próprio e ser eleito "genial" pela estranheza, como Liquid Sky, Repo Man, Xtro. Também vale citar que muitos filmes esquecidos ou que haviam passado sem ser notados, tiveram a chance de alcançar sua fama cult pela disponibilidade dos home videos. Alguns que não se deram bem no circuito comercial puderam encontrar seu lugarzinho no coração dos fãs pelas prateleiras das locadoras como VideodromeWaxworkA Noiva do Re-Animator e À Beira da Loucura.

Atualmente com a circulação massiva de informação parece meio sem sentido falar em "raridade pouco vista". O sucesso ou fracasso de uma produção começa a ser avaliado por outras vias além da bilheteria. O que pode ocorrer é que na cultura digital opiniões vêm e vão na velocidade de um click e muitos filmes já estreiam com fama alternativa consolidada como O Fabuloso Destino de Amelie PoulainNeon Demon ou Enter the Void.

Aí vai uma seleção Black Phillip de 20 cults!

1960 Mórbida Curiosidade • Incompreendido e rejeitado em seu período, passou a ser adorado posteriormente por cineastas e finalmente encontrou seu espaço na história. Veja o post.
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1965 La Décima Vittima • Crítico, irônico, referenciando HQs e pop-art. No futuro o Estado instituiu um jogo de assassinatos liberados a seletos grupos de participantes. Ursula Andress é uma caçadora que tem a missão de matar Marcello Mastroianni e o filme ironiza a cultura pop de massa, com seus engodos midiáticos, violência banalizada e imperativos estéticos (até Mastroianni está "pintado" de loiro!). Caçador e vítima se aproximam e se interessam um pelo outro, mas qualquer romance será impossibilitado pelas regras vigentes. Dirigido por Elio Petri que seria um dos mais importantes diretores do cinema político italiano. Destaque à trilha sonora kitsch do genial Piero Piccioni.

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1965 Incubus • William Shatner é um soldado que volta da guerra e passa a ser perseguido por um espírito que quer corromper sua alma. Bizarrice sem paralelo no cinema americano. Veja o post.
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1968 Candy • Fantasia nonsense muito representativa de seu período. Candy é uma bela e inocente jovem que passa por desventuras diversas em uma trama episódica. No desfile de figuraças, Richard Burton é um filósofo sempre envolto em brisas neoclássicas, Marlon Brando faz um guru oriental e James Coburn é um médico que rejuvenesce as pessoas. E ainda: Ringo Starr, Charles Aznavour, John Huston, Walter Mathaw, Florinda Bolkan... Na trilha, músicas do Steppenwolf e temas pop-rock compostos por Dave Grusin. O destaque maior é para a beleza exótica da atriz sueca Ewa Aulin no filme que deveria ter feito dela uma super-estrela. Divertida curtição da época.

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1968 Night of the Living Dead • Matricídio, canibalismo, cadáveres reanimados e questões raciais foram demais para o cinema pop americano dos anos 60 e o filme foi ganhando sua notoriedade apenas nos anos posteriores. Hoje é um divisor de águas no pop moderno. Influenciado por quadrinhos de terror dos anos 50, o filme de George Romero foi financiado por amigos e filmado em fins de semana em um notável e pioneiro crowdfunding! Veja mais em Top 10.
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1970 El Topo • Partindo dos excessos expressionistas dos westerns italianos, Alejandro Jodorowsky adiciona seu natural toque surreal em um delírio estético único. Sem surpresa, remete às estruturas dos quadrinhos psicodélicos (Moebius, Druillet e do próprio Jodorowsky). El Topo é a aventura de um pistoleiro nômade que atravessa o deserto em aventuras episódicas até ser destituído de sua persona e se engajar no salvamento de uma comunidade subjugada por forças corruptas. Claro que comentar Jodorowsky em um verbete deste porte será sempre redutor de seu conteúdo. Como toda sua obra, é um filme de descobertas a cada revisão.

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1973 Messiah of Evil (Zumbis do Mal) • Esteve disponível em cópias VHS muito ruim. Pode ser uma boa surpresa revê-lo atualmente em digital. Sofre por uma estrutura muito estranha, muito arrastada, noturna e doentia, mas isso pode ser sua maior virtude cult! Marianna Hill (High Plains Drifter) é uma ex-interna de sanatório que vai até uma cidade litorânea em busca do pai, mas o local é tomado por uma maldição que transforma seus habitantes em zumbis. Se a esquisitice geral não bastar considere como curiosidade extra que o diretor Willard Wyck e a esposa Gloria Katz, continuaram no cinema com trabalhos como Howard the Duck e ela roteirizou sucessos (como American Graffiti, Indiana Jones e o Templo da Perdição). O cara que vem correndo na cena de abertura é o diretor Walter Hill!

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1973 Demência • Jack Palance é um antiquário que encontra na estátua de um deus africano a chance de fazer fortuna. Uma variação na linha formal do thriller inglês do período. Veja o post.
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1974 Zardoz • Sean Connery no pior design de figurino da história. Ele é um guardião de uma sociedade telepática que se infiltra em seus espaços para por a casa abaixo. Já incluído em A Vingança dos Derrotados.
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1975 Rocky Horror Show • Clássico cult. Clássico alternativo. A miga-loka do cinema! Produção modesta baseada no sucesso dos palcos e seguindo de perto a estética rock-glitter do período (Fantasma do Paraíso, Tommy...). Susan Sarandon e seu namorado precisam pedir ajuda em uma mansão quando seu carro quebra na estrada. Mas o local esta tomado por uma horda de alienígenas liderados pelo doutor Frank´n´Furter que celebra a criação de seu super-homem. Vaudeville, glitter-rock, ícones nostálgicos (a torre da RKO) e Tim Curry dando show o tempo todo, fazendo a linha Freddie Mercury (ou terá sido o contrário?). O diretor Jim Sharman e o autor Richard O'Brien tentaram uma sequência no fraquinho Shock Tretement (1981).

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1975 Le Orme • Florinda Bolkan perdeu a memória sobre os três últimos dias vividos e apenas uma foto de um velho hotel pode levá-la a desvendar o ocorrido. Um sonho recorrente sobre um experimento científico espacial e a foto de um hotel na cidade de Garma, a levam a tentar desvendar o mistério. Mas na cidade todos a reconhecem por outra identidade. Elegante e envolvente mistério que imerge plenamente os sentidos em sua calma contemplativa e seus amplos ambientes oníricos com referências artísticas a art-noveau, surrealismo e especialmente a Münch na perseguição a Florinda na praia. Rápida participação de Klaus Kinski.

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1976 Massacre at Central High • Mortes misteriosas em uma universidade podem ser vingança contra uma gangue de alunos criminosos. Um clássico do cinema B americano. Veja o post.
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1977 • Eraserhead • Esse é lição-de-casa. Item básico para fãs de terror, cult, alternativo. Primeiro longa de David Lynch. Todo narrado pela perspectiva de um desajustado que engravida sua namorada e acaba abandonado por ela tendo que cuidar da criança monstruosa. Em seu velho apartamento ele vive de forma reclusa entre delírios e o filho que adoece. Obra embrionária do universo Lynch em seu deslocamento onírico, humor desconcertante e choques estéticos inesquecíveis. O protagonista Jack Nance faria participações nos filmes seguintes de Lynch. Considerando sua produção de poucos recursos, seu design sufocante e integridade sombria, é possível destacar Eraserhead ainda como o melhor filme do diretor. (Veja mais)

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1979 Warriors • Fantasia urbana da era punk. Com história simplista, conta a aventura de uma gangue que precisa retornar a seu território atravessando bairros dominados por gangues rivais. Não tão violento quanto poderia, mas ainda assim uma grande aventura na onda das distopias metropolitanas. Noturno, opressivo e inigualável. O diretor Walter Hill tentou repetir o feito em Ruas de Fogo, mas não deu...

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1980 The Boogeyman (Força Assassina) • O filme mais considerado do eterno diretor alternativo Ulli Lommel. Como muita coisa lançada em cópia ruim nos tempos do nosso VHS, pode ser interessante rever o filme agora, mas The Boogeyman está mais para o trash do que qualquer outra coisa. Com sua direção em modo automático e pobreza de produção, conta o drama de um jovem e sua irmã menor, traumatizados pelos maus tratos de sua mãe e seu padrasto. Quando adultos, são perseguidos pelo espírito do padrasto que estava aprisionado em um espelho e agora se liberta! Premissa bacana, mas realizada mediocremente. Como Sleepaway Camp, um ótimo exemplo do gênero tão-ruim-que-é bom...

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1985 Massacre in Dinosaur Valley (Perdidos no Vale dos Dinossauros) • Esse é para ilustrar verbete sleazy! Co-produção ítalo-brasileira que mistura um monte de ingredientes na aventura de um grupo (entre professores, aventureiros e modelos!) que precisa sair da floresta amazônica depois de um acidente aéreo. Circulando entre elementos de jungle-adventure e filmes de canibais, tem perua com bolsinha na areia movediça, tem a Susane Carvalho tomando banho, tem pancadaria como Trinity, tem fauna tropical fazendo hú-hú-há-há-há, tem o Carlos Imperial de vilão cafajeste e tem o grande Jofre Soares. Só não tem dinossauro! O vale se refere a uma região rica de ossadas pré-históricas. Produção em nível precário, mas com tanta maluquice acontecendo que diverte plenamente em modo exploitation!

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1987 Straight To Hell • Antes da cultura digital redefinir conceitos e agregar novas gerações de apreciadores, os spaguetti-westerns eram desprezados como sub-cinema. Alex Cox foi um dos pioneiros na valorização do gênero com este satírico neo-western. Straight To Hell antecipa Tarantino, antecipa os fan-films e antecipa a indulgência do pop contemporâneo. Mas sem querer badalar muito, é um filme que fica na farra entre amigos, preso ao desfile de figuras cult: Dennis Hopper, Grace Jones, Elvis Costello, Jim Jarmusch, Curtney Love, Joe Strummer, The Pogues. Um trio de foras-da-lei foge com o dinheiro de um assalto para uma poeirenta cidadezinha interiorana onde diversos personagens e destinos irão se cruzar. Um "pequeno filmaço" que valeu como curtição.

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1987 Os Olhos da Cidade São Meus • Filme-dentro-do-filme e um dos melhores momentos do diretor espanhol Bigas Luna. Veja o post.
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1988 The Navigator, a Medieval Odissey (Navigator, um Odisseia no Tempo) • Em uma aldeia medieval no século XIV, o garoto Griffin tem visões e sonhos que podem conduzir seu povo até uma grande cidade. Sua missão é cumprir uma oferenda religiosa e assim proteger a aldeia da peste que assola a região. Na jornada, Griffin conduz a missão através de limites temporais, alcançando uma cidade do século XX! Notável fantasia dirigida por Vincente Ward que, alternando foto colorida e preto-e-branco, cria uma estética delirante e inesquecível. A ironia suprema é colocar o homem contemporâneo e o homem medieval como semelhantes sociais. A idade moderna trouxe tecnologia, mas o homem é o mesmo...

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1991 Delicatessen • Fantasia cômica e distópica do diretor Jean Pierre Jeunet. Em um futuro indefinido a ausência de carne faz com que um açougueiro, chefe de um condomínio, providencie carne por vias clandestinas a seus clientes. Dominique Pinon é um ex-palhaço, recém chegado à moradia, que se apaixona pela filha do açougueiro e pode terminar indo para a panela! Delirante e caricatural, Delicatessen marcou época como um "cult de arte" que se destacou no circuito de cineclubes e mostras.

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