14 de outubro de 2017

Trasheiras!

Attack of the Crab Monsters

Cinema sem bajulação! Em uma sociedade na qual predominam valores dominantes sobre outros, criamos a cultura da segregação de qualquer coisa que nos induza a algum tipo de julgamento. Criamos a cisão entre o aceitável e o inaceitável. Isto "pode", aquilo "não pode". Isto "é bonito", aquilo "é feio". O cinema é uma atividade cultural que sofre constantemente no meio desse tiroteio conceitual por sua natural exposição midiática.

Na produção do pós-guerra em diante, quando as redes de distribuição e consumo de ampliaram com o fortalecimento da cultura de massa, o cinema americano, entre as diversas manobras para concorrer com a televisão, inventou as sessões duplas. Nas sessões duplas tínhamos um filme principal, o filme A. E tínhamos o filme que o acompanhava, filme B, de produção e equipe mais modesta. Ainda assim eram feitos por profissionais que sabiam o que fazer com luzes, câmera e ação. E tinha os que não sabiam. Aí vem o trash! Não é só questão de falta de dinheiro para produzir. Para ser trash de raiz era preciso não saber nada de cinema e só ter vontade de fazer filme. É como a pintura naif, na qual o artista tem uma vaga ideia de como desenhar, de como misturar cores e tá bom demais, pronto-tá-aqui-a-minha-tela! No trash é isso. Cinema naif! O filme Ed Wood de Tim Burton explica direitinho.

Só como exemplo: Monstro da Lagoa Negra é filme B. Tem luz correta, quadros planejados, montagem convencional. Tudo modesto, mas tudo correto. Agora veja Robot Monster: personagens de costas para a câmera, takes muito longos, atores desfilando diante da câmera imóvel, e a inocência geral: alienígena com pele de gorila (!), o comunicador que solta bolinhas de sabão, as falas estão decoradas, mas a direção é desleixada e por aí vai. Nesse exemplo entram os clássicos trash de primeira geração (anos 50) como Cat Woman of the MoonAttack of 50 Foot WomanAttack of the Crab Monsters, e todos de Ed Wood, especialmente Bride of the Monster e o divino clássico emblemático de todo o gênero, Plan 9 From Outer Space.

Plan 9 From Outer Space

E como aconteceu com a pintura, o tempo se encarregou de trazer respeitabilidade e reconhecimento à manifestação dos trashers (acho que foi só reconhecimento mesmo). Não é uma questão de ganhar ou perder na comparação com outros. É só um caso de reconhecer a manifestação pelo que ela é. Qual diretor é melhor Ingmar Bergman ou Herschell Gordon Lewis? Não importa. Tem que ver os dois. Bergman até fez o violento A Fonte da Donzela que foi refilmado no Last House on the Left por Wes Craven. Mas se eu disser que Bergman fez filme exploitation, Deus me bate!

trash é legal justamente pelo ridículo a que os envolvidos inadvertidamente se expõem. É comovente. E aí entra o questionamento da produção posterior que assumiu a pobreza de meios como característica, ou como contestação a uma indústria milionária pertencente a um panela reduzida de diretores e financiadores. Questionamento que se estende a um público adestrado que concorda com valores estéticos instaurados pela repetição (algo assim como o "padrão Globo de qualidade"). A questão é: se assumiram conscientemente sua condição, então perderam a "pureza" original? O produto dos trashers das gerações posteriores se tornou questionável? Talvez, mas continuou muito divertido. 

Uma vez descoberta a plateia que se divertia com as produções desajeitadas tivemos o cinema intencionalmente pobre de produção. Herschell Gordon Lewis foi um pioneiro ainda nos anos 60 com clássicos trash como Blood Feast2000 ManiacsWizard of Gore e She-Devils on Wheels. Alguns como John Waters levantaram e carregaram a bandeira da contestação de forma declarada. Pink Flamingos e Female Trouble como exemplos principais. Eternos outsiders do circuito comercial.

Nessa postura o diretor Frank Henenlotter é figura importante. Fã de cinema B, foi responsável pela série Basket Case entre outras maravilhas como Brain Damage (1988) e Frankenhooker (1990). Henenlotter voltou recentemente a ativa com o erótico-freak Bad Biology (2008) e trabalha nas seleções de filmes e como host para o selo Something Weird Video. E que tal o aclamado, adorado, cultuado Peter Jackson que começou com o fenomenal Bad Taste (1987) e depois partiu para orçamentos hollywoodianos em FrightenersSenhor dos Anéis e King Kong (Não sejam chatos, deixem o Peter ganhar dinheiro!). E que tal também outro grande diretor como Peter Weir que começou no divertido The Cars That Ate Paris (em DVD, Violência Por Acidente, 1974). Uma grande ideia mas limitadíssima pelo orçamento.

Wizard of Gore

Como aconteceu com o termo cult, a popularização da palavra trash trouxe a confusão semântica e então tudo o que continha escracho, pobreza de produção ou cena nojenta era imediatamente catalogado de trash! Por isso os filmes de terror geralmente são referidos assim. Mas também tem policial e faroeste trash. Eu já vi.

O termo tem relação fortemente ligada ao alternativo também por causa da trilogia de Paul Morrissey Flesh, Heat, Trash, do final dos anos 60, apadrinhados por Andy Warhol. Agora, pegue um filme como Psicose, que tem produção bem barata. É trash? Claro que não, porque o Hitchcock e equipe sabiam o que estavam fazendo. A mesma lógica se aplica ao "pobretão" XzistenZ de Cronenberg. E se aplica a Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver de Mojica, produção fraca de dinheiro mas transbordando de invenção!

Na década de 80 com a chegada dos home-videos essa pratica de fazer o filme para um publico já informado se intensificou. A série Ataque dos Tomates Assassinos é um grande exemplo de produção que sabia de suas limitações mas assumiu-as como virtude e como piada! (A série começou em 1978 e foi até os anos 90). Quer dizer então que temos o "trash raiz" e "trash nutella"? Mais ou menos... Mas já que o principio em apreciar o cinema trash é a ausência de julgamento segregador, então parece que não vale julgar muito...

Vejam Blood Diner (1987) refilmagem de Blood Feast (1963), ou Parents (1988), ou o divinamente asqueroso Street Trash (1987). A revista Fangoria teve seus bons momentos ao financiar algumas coisas bem bacanas como Estrada Para o Inferno (1991) e Children of the Night (1991). E a produtora Troma foi a expoente maior na consumação do trash junto ao gosto do publico que dispensava filmes de exibicionismo milionário e politicamente corretos. O filme emblemático da Troma é mesmo o pirado Toxic Avenger (1984). E a casa Full Moon também teve produção marcante no período por suas maluquices "vale qualquer nota" como Demonic Toys (1992), Troll (1986) e a divertida série Puppet Master.

Aqui a lista poderia ficar impraticável, então aí vão algumas coisas divertidas recolhidas dos guias de vídeo dos tempos do VHS, na linha "é ruim, mas legal de ver": Cabeças Voadoras (Shrunken Heads, 1993), A Coisa (The Stuff, 1985), Louco, eu? (Disturbed, 1990), Slugs (1987), O Terror da Serra Elétrica (Pieces, 1983), O Alien do Mal (Bad Channels, 1992).

Acho que posso parar por aqui e deixar o pessoal reclamar que faltou o "meu preferido". Como nota final de análise, acho uma pena a compulsória profissionalização nestes tempos digitais e a facilidade em dar "acabamento profissional" a qualquer filme. Cada vez mais temos profissionais que se empenham na repetição de valores estéticos dominantes. Pode-se justificar que há o ganho econômico e uma rede de exibição mais ampla via mostras e festivais e streamings, mas em contrapartida perdemos em inocência e molecagem artística. Sign of the times ...

Frankenhooker (1990)

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