20 de junho de 2021

Hellraiser - um clássico do fantástico moderno.

Hellraiser


O corpo estava completamente seco. A expressão no rosto dele pode ter sido a forma como a pele retraiu em volta da boca enquanto secava, mas, por Deus, a impressão era de que ele morrera gritando. (Evangelho de Sangue)

Por um momento seus calcanhares tocaram o cadáver no chão e, a seguir, ela se viu arrastada para o cômodo de onde o vivo e o morto haviam saído. Ele fedia a leite azedo e carne fresca. Ao ser jogada no chão, sentiu o assoalho úmido e quente. (Hellraiser)

Hellraiser foi o grande turning point do escritor britânico Clive Barker. Como a série Books of Blood, a novela serviu de exposição ao emergente talento insano e sua predileção pelo bizarro incondicional. Hellraiser conta a tragédia de Frank, um aventureiro que adquire a misteriosa caixa de Lemarchand, um dispositivo minuciosamente construído que, quando destravado, invoca a presença dos apavorantes Cenobitas, entidades que proporcionam ritos de dor e/ou prazer a seus subjugados (– A caixa é uma maneira de quebrar a superfície do real - explicou - Um tipo de invocação por meio da qual nós, os Cenobitas, somos notificados...). 

E o fascínio da decifração da caixa é a possibilidade de levar o usuário a um mundo de prazeres carnais indescritíveis (Seu erro na verdade, tinha sido a ingenuidade de acreditar que a sua definição de prazer era a mesma dos Cenobitas). Frank é tragado aos domínios infernais onde os Cenobitas reinam, mas consegue escapar do tormento dimensional quando um pouco de sangue é derramado sobre seus restos, realimentando-os. Agora ele precisa de mais sangue para sua regeneração completa.

A novela é imprescindível na história do fantástico literário, mas é evidente que Barker ainda ensaiava sua narrativa de fantasia incondicional, contemporânea aos famosos Livros de Sangue. Mais do que no livro, a história teve seu potencial ampliado na versão cinematográfica dirigida pelo próprio autor, lhe rendendo reconhecimento mais amplo e fazendo dele uma referência nas narrativas do horror modernas. 

Agora, a coisa é bem diferente em Evangelho de Sangue, escrita vinte e sete anos depois de Hellraiser e funcionando como uma revisitação ao universo dos Cenobitas. Evangelho de Sangue encanta brutalmente logo em seu prólogo sangrento. Dividido em cinco blocos, subdivididos em capítulos curtos, o livro flui naturalmente contando a aventura do detetive Harry D'Amour (recorrente de outras histórias do autor) que investiga a vida paralela de um pai de família (a pedido de seu espírito!) e descobre em sua moradia diversos livros de magia, artefatos macabros e... a caixa de Lemarchant! Harry é um detetive de casos sobrenaturais e logo estará sendo perseguido pelo Cenobita Pinhead (perdão, Sacerdote do Inferno) - (Seja fanfarrão enquanto ainda tem fôlego para isso. Você é Harry D'Amour, detetive particular, flagelo do Inferno).

Evangelho de Sangue é um romance de texto ágil, com o autor bem mais à vontade (do que em Hellraiser) no assumido surreal-nauseante que o consagrou e com um sabor muito próprio em suas descrições sádico-eróticas. Uma dosagem entre terror e fantasia macabra. Mas a virtude do livro é mesmo sua construção incomum, que começa como uma história detetivesca e progride para o delirante plano do Cenobita em reestruturar a ordem no Inferno (Pinhead golpista!?) e encontrar um meio de adentrar a dimensão dos vivos, sem depender da caixa de Lemarchant! (–Ele matou quase todos de sua Ordem. Deveríamos prendê-lo e executá-lo). O livro tem seus pontos fracos em momentos meio arrastados, diálogos óbvios de ironia em nível filme B, mas encanta plenamente em suas descrições de paisagens infernais (onde se passa a metade final) e seus delírios violentos. 

... o que há dois minutos era uma massa de carne indefinível, agora estava se organizando. A matéria barrenta que Harry vira antes havia se alterado, havia quase um nariz, quase uma boca e dois buracos como impressões digitais onde deveriam existir olhos. O homem de barro começou a andar na direção deles, vapor subindo das mãos ensopadas de sangue.


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Hellraiser
Hellbound Heart, 1986
Editora Darkside, Rio de Janeiro, RJ, 2015
150 páginas

Leitura Radical
O autor ainda em fase de ignição.

Leitura Passional
Clássico do fantástico moderno. 

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Evangelho de Sangue
The Scarlet Gospels, 2015
Editora Darkside, Rio de Janeiro, RJ, 2016
317 páginas 

Leitura Radical
Construção lenta.

Leitura Passional
Loucura desenfreada típica do autor. 

Hellraiser

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