1 de outubro de 2021

Fantasmas do Século XX - a ignição de Joe Hill

Joe Hill

Elena desceu os degraus rumo à escuridão com as pernas bambas. O ronco da IBM do pai enchia o breu cheirando a bolor, de modo que a própria penumbra perecia vibrar como uma corrente elétrica antes da tempestade. Estendeu a mão para a luminária ao lado da máquina  e acendeu -a no mesmo instante em que a IBM explodiu em mais uma saraivada de tec-tec-tecs. Deu um grito, depois outro grito , quando viu as teclas se mexendo sozinhas, os tipos de cromo batendo no cilindro preto vazio.

Primeiro trabalho do escritor Joe Hill, Fantasmas do Século XX é uma reunião de dezessete contos de fantasia, horror e suspense. Com predileção por protagonistas juvenis e citações frequentes a baseball, Hill exercita os músculos literários em um conjunto repleto de ideias que disparam em todas as direções, do poético ao escatológico, mas as narrativas são meio fragmentadas e dificilmente compõem conjuntos coerentes, ou fluentes, se for esperada uma narrativa tradicional. Falta, na maioria das histórias, uma trama que puxe os textos adiante e todas são mais situacionais do que constituintes de encadeamento narrativo. Sua virtude é a ousadia, mas então esbarramos em outro problema: as liberdades surreais nem sempre se encaixam bem no pragmatismo da cultura ianque e podem soar artificiais.

Alguns contos exploram a própria cultura fantástica da qual o autor é cria (mais do que simplesmente por ser filho de Stephen King), como o mercado editorial (em O Melhor do Novo Horror) ou o conto que dá título à coletânea, ambientado em um cinema decadente que exibe clássicos de terror. Nessa linha, é especialmente divertido o conto Bobby Conroy Volta dos Mortos, onde dois ex-namorados se reencontram como figurantes zumbis na filmagem de Dawn of Dead!

– Alguém por aqui quer se candidatar a levar um tiro? – perguntou George Romero a menos de um metro de distância – É um close garantido na sequência final. 
Bobby e Harriet levantaram a mão ao mesmo tempo. 

Alguma histórias abraçam o surreal incondicional como o episódio de Arthur, um garoto inflável (!), que vive sofrendo bullying por sua condição e faz amizade com um jovem desajustado no ambiente escolar. 

Art me disse certa vez que tinha um tio-avô, também inflável, que um dia flutuou para o meio de uma pilha de folhas e estourou nos dentes de um ancinho enterrado. 

Talvez tenha sido intenção do autor, não definir rigorosamente os ambientes genéricos de cada conto e escapar dos clichês de terror, humor e suspense. É possível que a mistura de ideias e alternâncias narrativas – e até a indefinição de foco em diversos momentos – tenha sido intencional na busca do incomum. Mas a impressão que fica é que o material deve ter sido muito mais interessante na mente do autor do que ficou colocado no papel. Resta assim, o exemplo a novos escritores, para se checar acertos, erros e armadilhas em um processo de criação literária.


Leitura Radical
Excesso e dispersão de ideias.

Leitura Passional
Diversidade de situações
_____________________
Fantasmas do Século XX
20th Century Ghosts, Joe Hill, 2005
Editora Sextante, Rio de Janeiro, RJ, 2008
285 páginas

Joe Hill

Nenhum comentário:

Postar um comentário