18 de outubro de 2019

Livros nas telas - da página ao frame...

O Iluminado

• O caso de atração do cinema pela literatura é tão velho quanto a própria história do cinema – parece que alguém já escreveu essa frase, mas é porque é assim mesmo. O cinema mudo já fazia sua apropriação de histórias literárias em adaptações como as de Frankenstein de Thomas Edison (1910), Alice no País das Maravilhas (1903), O Mágico (1926) ou Viagem à Lua (1906). No caso do fantástico deve ser mais fácil buscar os filmes que não foram baseados em livros do que o inverso.

Quase como via de regra pode-se afirmar que grandes livros jamais serão adaptados decentemente para as telas simplesmente porque a linguagem é outra, porque o leitor passa mais tempo com o livro do que com o filme, porque as nuances esmiuçadas em texto dificilmente serão transpostas para a sintetização em imagem. O livro é individual. O filme é coletivo. Isso para não falar de casos em que a obra literária tem tal forma de construção (em palavras) que nem faz sentido tentar adaptá-la, como os livros de Kurt Vonnegut em suas estruturas muito próprias, ou o Almoço Nu que Cronenberg pegou o título e fez uma boa variação em filme (... mas é variação). 

Talvez por isso Lovecraft não tenha tido nenhuma adaptação decente para as telas. O mistério construído em palavras parece não ter muito espaço na cultura da explicitação visual do cinema. O Caso de Charles Dexter Ward (1990) é uma pálida exceção, assim como o recente A Cor Que Caiu do Espaço (2019). A Maldição do Altar Escarlate (1968), The Dunwich Horror (1970) ou Re-Animator (1985) são apropriações de idéias do autor em filmes medianos que nem configuram uma "versão filme" do texto original. O mesmo vale para as inúmeras versões da obra de Edgar Allan Poe, situação que merece até um texto à parte. Basta considerar que o título O Corvo foi utilizado em incontáveis obras que pouca relação tiveram com o poema original, além do nome.

Nos casos mais íntegros como adaptações de Dennis Wheatley (Uma Filha Para o Diabo, As Bodas de Satã) temos bons filmes, mas a impossibilidade de checar os livros em português. Há que se considerar que essa geração de autores do início do século XX teve que esperar algumas décadas para ter a receptividade merecida. A Golden Age invariavelmente privilegiou os clássicos gótico-românticos como material para adaptações (N. Hawthorne, irmãs Bronte, p. ex.). Daphne Du Maurier é um caso curioso que atravessou eras com clássicos básicos como Rebecca até a expansão para outras gerações com as adaptações de The Birds e Don´t Look Now.


Com o fortalecimento da cultura de massa na era eletrônica (anos 50 em diante) o que antes era mundano e desprezível enquanto cultura popular – ameaças do espaço, assombrações, psicopatas – foi gradualmente sendo alçado a respeitabilidade, ainda que oriundo da forja pulp (Psicose como o grande exemplo). Na atual cultura digital, estatísticas falam mais alto do que qualquer outro medidor e validam obras por vias duvidosas enquanto revela novas gerações de talentos literários.

Um fenômeno curioso que ocorre com frequência é que livros medianos ganham muito em sua versão filme, como por exemplo Desejo de Matar de Brian Garfield, O Segundo Rosto de David Ely, O Vidiota de Jerzy Kozinski. Obras que, sem surpresa, voltariam ao mercado literário em edições beneficiadas pela divulgação pós-bilheterias. Tarkovski é um caso à parte e as adaptações de Solaris e Piquenique na Estrada (Stalker) valem tanto na forma texto quanto imagem. E os casos de filmes tão bons quanto bons livros, como A Sangue Frio ou Tess, são pouco frequentes.

É possível que, dada a natureza exploit das novelas e romances de terror, os filmes (objetos pop por natureza) não envergonhem tanto as obras que os inspiraram. Além das recorrentes versões de Drácula e Frankenstein e O Médico e o Monstro, adaptações tão boas quanto o livro fazem uma lista respeitável no cinema fantástico: Os Inocentes (H. James), As Diabólicas (P. Boileau, T. Narcejac), Tara Maldita (W. March), Desafio do Além (S. Jackson), Os Gêmeos (T. Tryon), Tubarão (P. Benchley), O Inquilino (R. Topor), Carrie (S. King), A Entidade (F. de Felitta), A Casa da Noite Eterna (R. Matheson), Horror em Amityville (J. Anson), A Serpente e o Arco-Íris (W. Davis), A Fúria (J. Farris), Hellraiser (C. Barker), Esconderijo (Dean Koontz) ou Os Mortos Vivos (P. Straub) são casos de filmes na boa média popular, derivados de uma literatura que nunca pretendeu revolucionar a história. Claro que de Henry James a Peter Benchley temos distâncias culturais e históricas consideráveis, mas o ponto é que a despretensão pulp da literatura de terror e filmes derivados sempre andaram bem de mãos dadas.

Já é fato consumado o negócio bem sucedido entre editoras e estúdios de cinema em uma troca benéfica cada vez mais validada, sendo o sucesso comercial do projeto filme/livro uma espécie de indicador de virtude. Cada década parece ter o(s) seu(s) mestre(s) consagrado(s) que inevitavelmente lança pacotes de best-sellers reconhecidos nas lojas e nas bilheterias. O próprio termo best-seller já teve sua conotação pejorativa em outras épocas, equivalendo a "literatura fácil", mas o mercado a tudo engole e atualmente vender é virtude... E o mercado nos alcança irremediavelmente nos "pacotes livro-filme" que vez ou outra surgem em telas e prateleiras de stores e rapidamente lançam nomes ao estrelato. Alistair MacLean, Frederick Forsyth, Robert Ludlum, Dan Brown, encabeçam uma lista respeitável de grandes-vendas no pleno funcionamento da indústria cultural. No fantástico temos os casos similares como os de Dean Koontz, Frank de Felitta, Jeffrey Konvitz, David Seltzer, Thomas Harris e Stephen King. 


O sucesso de O Bebê de Rosemary (1967) de Ira Levin e O Exorcista (1971) de William Peter Blatty, impulsionou o gênero "possessão demoníaca" pela década de setenta. E impulsionou a venda de livros no consumo popular. Ainda não descobri se A Profecia de D. Seltzer é uma novela adaptada pelo próprio autor para a tela, ou se roteiro e novelização nasceram juntos como estratégia de venda. Talvez nem faça diferença, mas seria interessante constar...

Logo após esse período temos o caso Stephen King, o rei-pop-star da literatura de terror contemporânea. Do sucesso de Carrie de Brian De Palma (a partir de um livro mediano) à consagração de O Iluminado de Stanley Kubrick, baseado (e muito melhorado) em um livro de óbvio modelo best-seller (que tem até final feliz!), King tornou-se a referência maior na atualidade. Vale mencionar que o próprio autor admite a influência do filme Burnt Offerings na criação de O Iluminado. E assim cinema e literatura vão se realimentando. Ainda bem! Por muitos anos, em meados da década de 1980 e mais um pouco, Stephen King foi sinônimo de filme ruim adaptado de livro pop. Curiosamente, o mercado (literário e cinematográfico) se encarregaria de reabilitar seu nome em produções mais consistentes como O NevoeiroJanela Secreta ou 1408 (veja também, Doutor Sono...)



Agora, em uma época em que até Tolkien foi finalmente transposto para as telas, a parceria texto-imagem vai continuar sim, com força renovada. Quem acredita que 30 horas de leitura é muito mais compensador do que 90 minutos de filme só tem a agradecer, pois o namoro entre o cinema e as editoras continua nestes tempos de cultura digital, de índices e respostas mais imediatos. Novos clássicos vão garantindo seu lugar na história tanto da literatura quando do cinema e mais autores vão ganhando notoriedade: Dennis Lehane, Josh Malerman, Koushun Takami, Patrick McGrath, Scott Smith, John Ajvide Lindqvist, Koji Suzuki, Susan Hill, Ransom Riggs, entre outros, vão fazendo andar a fila e estimulando a conferencia em ambas as formas de linguagem.
Por mim, acredito que os filmes individuais proporcionados pelas leituras ainda não tenham sido superados.....

george chastain
G. Chastain

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